OSR – Old School Recalque

 

OSR – Old School Recalque

Nostalgia, disputa cultural e resistência antifascista no RPG de mesa

O RPG de mesa sempre foi mais do que um hobby: é um laboratório de mundos possíveis, regras sociais, papéis de poder, identidade e imaginação. Por isso, as disputas políticas e culturais do mundo real inevitavelmente se infiltram nas mesas mesmo quando os jogadores juram que quiserem “apenas rolar dados e matar goblins”. Hoje, uma dessas disputas se concentra no debate em torno de Old School Renaissance (OSR)

O OSR propõe um retorno às raízes do RPG: simplicidade de regras, improvisação, letalidade, exploração e “felt-old-school”. Para muitos, ele é uma redescoberta libertadora. Para outros, contudo, virou doutrina: uma ideologia de nostalgia rígida, que legitima gatekeeping, exclusão, conservadorismo e, em casos graves, tende a servir de abrigo para mentalidades autoritárias ou fascistas.

Este texto é uma crítica sustentada combativa e embasada. Examinamos como parte do OSR se transformou em recalque, por que isso dialoga com correntes conservadoras mais amplas, e como iniciativas como a New School Revolution (NSR) e projetos explícita­mente antifascistas resistem a essa regressão. A meta: defender um RPG plural, politizado, consciente sem abrir mão da imaginação ou da aventura e sem dar espaços para pessoas com visão de mundo minúsculas.


O que o OSR quis ser e por que funcionou tão bem?

O OSR emergiu como reação aos RPGs modernos — complexos, balanceados, cheios de regras, mecânicas de build, otimização de personagens. Em contrapartida, o OSR resgata os princípios dos primeiros RPGs (anos 70–80): regras simples, improvisação livre, perigo real, mortes frequentes, exploração de masmorras, economia de recursos e um estilo de jogo onde o Mestre decide (“ruling, not rules”) em vez de depender de regras estritas.

Materiais como Muster — An Old-School Primer explicam esse ethos: não como doutrina, mas como técnica de jogo — uma opção legítima dentre muitas. O apelo é claro: menos complexidade, mais agência dos jogadores; mais risco, mais tensão dramática; mais improvisação, mais criatividade.

Para quem cresce em meio a sistemas pesados, com poderes definidos, buffs, balanças e otimizações, o OSR soa como libertação.

Quando a nostalgia vira dogma e comunidade vira culto

Com o tempo, parte significativa do OSR deixou de ser alternativa de jogo e se tornou ideologia. A nostalgia se transformou em norma, e a norma se transformou em hierarquia.

O problema começa quando o OSR deixa de ser uma escolha estética/paradigmática e se torna uma doutrina rígida — uma visão de mundo que define “o RPG de verdade”. Isso se expressa de várias formas:

• Gatekeeping e hostilidade

Quem não joga “como manda o OSR” é visto como “não entendido de RPG”, “nutellas”, “não old-school de verdade” ou "Wokes" Isso cria grupos fechados, hostis a diversidade de estilos narrativos ou temáticas. E tratado como amador ou coisa pior. (mesmo eu que ja tenha visto pessoas mais velha e babaca do que eu nesse meio no qual desconhecia direito regras de TAC0 e demais jargões do estilo)

• Purismo mecânico → purismo moral

O apreço pela “letalidade real”, por decisões duras e pela “dureza” do mundo de fantasia pode refletir conscientemente ou não visões de moral, justiça e poder que exaltam hierarquia, mérito e sobrevivência a qualquer custo. Uma insistência irracional na "brutalidade realista", na punição, na autoridade absoluta do Mestre, que se alinha com discursos sociais autoritários. (muitas vezes com viés de extermínio de um certo tipo de povo/espécies marginalizadas ou diferentes por trás disso, como Orcs, Furrys, elfos, anões, Minotauros, Goblins etc...)

• Restauração acrítica do passado

quando se idolatra os primórdios do RPG sem contextualizar os viéses sociais e culturais da época, todo o pacote histórico com racismo, sexismo, exclusão também é revisitado sem questionamento. O passado é sempre romantizado, mas sem considerar os aspectos excludentes, racistas, misóginos e elitistas que marcaram a origem do hobby, como discutido em Fifty Years of Dungeons & Dragons.

Em fóruns brasileiros de RPG, esses impasses se revelam repetidamente: há quem defenda que “política” não pertence ao RPG; que “inclusão” ou “diversidade” estragam o espírito; que o jogo “tem de ser letal, brutal, impiedoso” para ser old school de verdade:

“o movimento OSR … acaba se tornando um estilo de jogo próprio (ou ’sui generis’)” — como se fosse o único estilo válido.

Esse tipo de afirmação converte o OSR em fé, e o Mestre em sacerdote de um credo com dogmas, liturgias e hereges à porta. Quando um estilo vira “o certo”, toda pluralidade vira ameaça.


OSR & Conservadorismo: quando a nostalgia dialoga com ideologias autoritárias

A conexão entre o OSR e correntes conservadoras não é acidental.

A ideia de “voltar a uma época melhor”, purificada, com hierarquias claras, punições severas, autoridade incontestável, isso não é só estética de jogo, é mentalidade política.

O problema não é jogar letal, difícil, ou simples.
O problema é transformar isso em cosmovisão do mundo e do hobby social.

Assim como movimentos reacionários resgatam “tradições” para mascarar intolerância, setores do OSR resgatam “o verdadeiro RPG” para mascarar exclusão, hostilidade e discursos moralistas.

Voltar ao “velho-escola” nem sempre é inocente. Em contextos sociais marcados por ascensão de conservadorismos como acontece atualmente em diversos países, inclusive no Brasil o OSR pode se tornar terreno fértil para ideias reacionárias.

Por quê?

  • Tanto o conservadorismo social quanto o “OSR dogmático” partilham da mesma lógica de restauração de um passado idealizado com hierarquias, controle, restrições, moral rígida.

  • O discurso de “neutralidade” ou “não introduzir política no RPG” funciona como silenciamento de vozes críticas, sociais, marginais exatamente como o conservadorismo tenta dominar espaços culturais.

  • A naturalização de violência, injustiça e letalidade no RPG pode refletir aceitação de ideias de poder autoritário, de autoridade incontestável do Mestre, de punição como valor.

Ou seja: o recalque old school sob aparência de “saudade” ou “pura diversão” pode dialogar diretamente com ideologias autoritárias, excludentes e intolerantes.

Quando se ignora a dimensão política do hobby, os riscos sociais se expandem.


As críticas de Márcia B – quando o academicismo desmonta o mito do “old school”

Entre as vozes mais importantes criticando abertamente o OSR está Márcia B, pesquisadora e autora reconhecida internacionalmente, cuja série de textos e jogos publicados no Traverse Fantasy se tornou referência obrigatória.

Em “The OSR Should Die – Basic Edition”, Márcia argumenta que o OSR deixou de ser movimento estético ou mecânico e se tornou um culto ideológico conservador, baseado em três pilares tóxicos: dito acima como Purismo mecânico, Gatekeeping e restauração acrítica ao passado com viés patriarcal e perigoso.

Márcia desmonta a narrativa de que o OSR seria politicamente neutro. Mostra que o movimento, na prática, atrai e normaliza discursos misóginos, racistas e anti-inclusão não por acidente, mas porque sua estrutura ideológica cria terreno fértil para isso.

Se o OSR diz que “o jogo não tem política”, o que ele realmente diz é:
“somente a minha política invisível é permitida”.

O trabalho de Márcia expõe o que muitos evitavam dizer.


Resistência: NSR, antifascismo e o RPG como espaço social

Mas onde há regressão, há revolução. E dentro do RPG, ela veio de vários lados.

NSR — New School Revolution

A NSR surge como contraponto radical: não ao old school em si, mas ao purismo. É uma proposta de RPG sem dogmas, sem moralismo, sem puritanismo — baseada em narrativa, colaboração, acessibilidade e abertura estética.

Enquanto o OSR dogmático diz “volte ao passado”, a NSR diz “crie o futuro”.

Horoscope Zine & RPG Antifascista

No Brasil, o RPG Antifascista — publicado pela Horoscope Zine — consolida uma visão clara:
RPG é espaço político, e qualquer mesa que pretenda ser ética precisa assumir posição antifascista, antirracista, inclusiva e plural.

É uma obra que não apenas propõe mecânicas, mas propõe postura“fantasia sim, fascismo não”.

Dados na Dungeon, da Jotun Raivoso — Old School sem puritanismo reacionário

O RPG Dados na Dungeon, da editora brasileira Jotun Raivoso, é um exemplo precioso de como é possível jogar com estética clássica sem cair na armadilha fascistóide do purismo OSR.

Ele é:

  • simples, direto, mortal;

  • cheio de estética old-school;

  • mas completamente livre da moral dogmática reacionária atribuída à era Gygax.

É um “clássico não fascista”, um OSR libertado, um jogo que prova que o problema nunca foi o estilo  foi o culto ao passado e suas ideologias tóxicas.


Caminhos para uma mesa consciente e libertadora

Se você mestra, joga ou cria conteúdo para RPG, algumas atitudes fazem toda diferença:

  • Mesa aberta & consciente: combine com seus jogadores desde a sessão zero os valores da mesa inclusão, respeito, espaço para diferentes identidades.

  • Contextualização histórica: ao usar tropes old-school (dungeons, monstros, moral ambígua), reflita: por que está usando? Que significado esse uso carrega?

  • Diversificação de inspirações: busque jogos, zines e autores fora do cânone tradicional; apoie produções independentes, minoritárias, críticas.

  • Denúncia e moderação de discurso nocivo: online ou presencialmente, não normalize comportamentos excludentes, moralismos autoritários ou gatekeeping.

  • Valorização de alternativas NSR, jogos antifascistas, mesas colaborativas, narrativas sociais.

Essas práticas não enfraquecem o RPG fortalecem-no.


Conclusão: o futuro não é old school é crítico!

O OSR pode ser divertido, desafiador, inspirador. Nada disso precisa acabar. O que precisa acabar é a doutrina, o puritanismo, o fascismo travestido de nostalgia, a política invisível da exclusão.

O que queremos não é destruir o passado. É libertá-lo do uso reacionário que fazem dele.

Jogos como Dados na Dungeon, obras como RPG Antifascista, movimentos como NSR, e autoras como Márcia B apontam um caminho: um RPG crítico, plural, combativo, inspirador, criativo e vivo.

O passado serve para inspirar e ensinar.
O presente serve para resistir e lutar.
O futuro serve para imaginar e conquistar.

Não é “lacração”.
Não é “politização”.
É responsabilidade cultural!

E imaginar é o que fazemos melhor enquanto rolamos dados sobre mesas e rimos juntos compartilhando momentos doces e alegres.

O OSR tem valor e pode continuar sendo uma opção legítima, estética e divertida. O problema não está na simplicidade, no risco, na improvisação ou na estética “old school” mas na tentativa de transformar tudo isso em doutrina, culto, padrão absoluto.

Quando a nostalgia vira dogma, ela tende a reproduzir exclusão, conservadorismo e até autoritarismo. E o hobby que amamos, que deveria ser espaço de imaginação e liberdade, se transforma em câmara de eco de mentalidades retrógradas.

Felizmente, existem muitas vozes dispostas a dizer “não” a esse recalque: NSR, zines independentes, jogos antifascistas, mestres e jogadores conscientes. Eles mostram que o RPG pode ser plural, diverso, político, acolhedor e ainda assim vivo, intenso, imprevisível.

Se você mestra, joga ou apenas ama RPG: escolha o respeito. Escolha a diversidade. Escolha a crítica. Escolha imaginar outros mundos não repetir o velho mundo.

Porque o futuro do RPG não está em reviver o passado sem questionar. Está em transformar essa nostalgia em ponte não para retrógrados, mas para mundos novos, mais justos e mais imaginativos.

Eu amo o estilo Old School e conheço amigos dentro e fora da internet no qual trocamos informações, novos métodos e jogos para conhecer e jogar que permeiam nesse "velho estilo de jogo" também, porém a diferença é que reconhecemos os problemas que esses materiais carregam e soubemos separar e aproveitar aquilo que não adotamos do otário do Gygax e seus amigos velhos de sua época.

Efim espero que a OSR assim como a NSR não caiam em armadilhas, e que se mantenham sempre a frente sem dar mais espaços para esses intolerantes que não merecem estar presentes numa mesa ou terem suas participações em projetos futuros grandiosos no meio indie ou internacional.

 O passado nunca foi tão nobre quanto a nostalgia sugere: por que a idealização é seletiva

Parte do charme do OSR é a idealização de uma era “pura, corajosa, verdadeira”. Mas a história importa e incomoda.

As primeiras décadas de RPG de mesa foram marcadas por exclusão: grande maioria de autores e jogadores eram homens cis, muitas vezes brancos; espaços excludentes para mulheres, pessoas LGBT+, minorias raciais; ausência de representatividade e com isso, reproduções de muitos preconceitos da sociedade da época.

Obras recentes como Fifty Years of Dungeons & Dragons revisitam com honestidade o legado de D&D: não só celebrando sua importância cultural, mas problematizando seus limites, silencios e omissões. Jogar “como nos anos 70/80” significa, se não criticar, também herdar essas omissões a menos que se faça um esforço consciente de reinterpretação crítica.

Idealizar seletivamente é apagar partes inconvenientes da história e isso reforça o recalque.

O RPG do futuro é plural, crítico, diverso, estranho, acolhedor. E old school, só se for de verdade  não de recalque.


Citações diretas

“O OSR deixou de ser um conjunto de técnicas e virou uma ideologia conservadora que usa o passado como arma cultural.” — Márcia B, The OSR Should Die — Basic Edition

“A nostalgia do velho-escola não pode ser inocente num mundo onde o passado é usado como ferramenta política.”Fifty Years of Dungeons & Dragons

“o movimento OSR … acaba se tornando um estilo de jogo próprio (ou ’sui generis’)” — Debate no r/rpg_brasil

“Quando vejo isso, interpreto como a política hoje: binária, nós vs eles… o mundo acaba se X for eleito.” — Crítica à “neutralidade apolítica” do OSR.

Links úteis

Autora Márcia B

Jogo citado — Dados na Dungeon (Jotun Raivoso)

Obras mencionadas

  • Fifty Years of Dungeons & Dragons

  • Muster — An Old School Primer (Arkenstone Publishing)

  • RPG Antifascista — Horoscope Zine

Discussões brasileiras relevantes


Comentários

  1. Excelente artigo! Me entristece muito ver tanta gente usando a OSR como ferramenta para divulgar ideologias reacionárias. Tem um canal estadunidense (não citarei o nome para não dar visibilidade) que tem alguns vídeos interessantes sobre a OSR, mas de uns tempos pra cá tem estado com uma conversa de o quanto que o passado do RPG era melhor, em como que os jogos hoje em dia são "lacradores", que os jovens que jogam jogos mais modernos são covardes por não terem a "coragem" de jogarem com personagens que morrem com um tapa de goblin, etc. Esse tipo de fala acaba sendo extremamente nociva por reduzir o RPG, um hobby tão amplo, a uma simples experiência hack'n'slash. Jogos narrativos? Woke. Jogos que fazem pensar? Woke. Jogos críticos? Woke. Tudo é woke, tudo é politizado, menos os joguinhos da década de 1970 sobre colonialismo e genoc- quero dizer, "exploração dos ermos"...

    Construamos um futuro melhor para o RPG onde todas as pessoas sejam bem vindas!

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    1. E isso aí, vamos combater sempre essa galera, e deixar que ficam fritando sozinhos nessa ideia deles sem ganhar mais espaços por nosso hobby. Agradeço demais por curtir, espero que esse artigo cheguem mais pessoas para se posicionarem.

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  2. Obrigado por partilhar uma boa síntese. O chamamento à ação no último trecho é importante, uma vez que o jogar, espaço político, é campo de disputas.

    Há camadas de moralismo, hierarquias, supremacismos e nostalgia que não são nem um pouco positivos para nós. Cabe seguir na disputa e agir politicamente com criticadas.

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